18.3.06

Ela e só ela

Sabes o que ele me disse? Que aquilo é como a primeira namorada. Adormeces a pensar nela e acordas a pensar nela.
Eu já sabia, já te tinha dito, lembras-te?, eu já sabia mas não queria ter a certeza.
Foi assim. Telefonei ontem à hora do almoço lá para casa e a mãe, devia ser a mãe, era a mãe com certeza, disse-me que ele ainda estava a dormir. Há uma data de dias que não o via, não podia mais. Peguei no carro e fui lá.
Quando cheguei, estava a tomar duche e tive de esperar um bocadinho no quarto dele. Na parede um poster a preto e branco. No chão, a roupa da noite. Entrou silenciosamente. Estava lindo, tão lindo dentro do roupão azul escuro. Nem imaginas como ele é lindo.
Foi tomar o pequeno almoço na cozinha e depois disse-me para voltar com ele lá para cima. Fechou a porta atrás de nós mas não a fechou à chave, mas eu pensei de qualquer modo que ele me ia agarrar, beijar. Eu ainda só dormi com ele duas vezes, mas devia ser proibido fazer amor assim. Agarrou-me por dentro, sabes? Devia ser proibido. Uma pessoa não pode fazer nada.
Mas ele não me agarrou. Tomou um ar sério e disse-me para não ter medo e depois sorriu. Então começou a preparar aquilo. Fiquei muda todo o tempo. Passavam-me coisas tão depressa pela cabeça que eu não conseguia pensar em nada. Não conseguia tirar os olhos daquilo.
Depois arrumou tudo e pôs um disco, como se nada fosse. Eu fiz de conta. Passado um bocadinho chegou um amigo dele, o Tó. Beberam uma cerveja e depois o Tó foi-se embora. Ele voltou a fechar a porta e voltou a preparar aquilo e a fumar aquilo. Para atestar, disse, percebes? Eu não lhe disse nada. Ele gostava mais daquilo do que de mim. Muito mais, tive a certeza. Apeteceu-me chorar mas não chorei. Olhei o Ian Curtis que continuava no seu salto no poster e fiz como se tudo aquilo me fosse indiferente. Uma pessoa consegue.
Mas eu sei muito bem, eu é que lhe sou indiferente. Eu e tudo o resto. Menos aquilo. O que aquilo faz é tornar tudo o resto indiferente, sabes? O verdadeiro inferno.
Não me agarrou. Eu é que tive de o agarrar. Parecia um bebé a sorrir. E eu gosto tanto dele, merda. Despi-o e fiz-lhe amor e foi então, logo a seguir, que ele me disse: "Sabes, aquilo é como a primeira namorada. Adormeces a pensar nela e acordas a pensar nela."

Pedro Paixão
Viver todos os dias cansa, 95

11 comments:

Sara Mota said...

Pedro Paixão…
Tomei conhecimento da sua existência há coisa de ano e meio, quando comprei o livro “Quase gosto da vida que tenho” para oferecer a uma amiga minha. Entretanto, li-o. Apaixonei-me. Até à data nunca tinha lido livros daquele género, porque aquele tipo de livros não me agradavam muito. Mas ainda bem que o descobri.

Primeiro “Quase gosto da vida que tenho”; depois “Viver todos os dias cansa” e, mais recentemente, “Nos teus braços morreríamos” – apaixonei-me, sobretudo, por este último.

Gosto da escrita dele. Leve, mas que consegue, ao mesmo tempo, ser profunda. Verdadeira.

Agrada-me a existência de escritores assim. :)

Helena said...

:)*




é claro que se eu não tivesse sido a musa inspiradora destes escritos eles não estariam aqui
;D

Sara Mota said...

Oh, sim! claro!!! E que bela musa...! ;P :DD**

Helena said...

eu a musa e ele o muso
;DD

Anonymous said...

O Pedro acompanhou-me na adolescência. Eu bebia sofregamente as suas palavras. Procurava, louca, as justificações dos homens-que-abandonam-as-mulheres e as palavras das mulheres-que-se-sentem-sós (que eram as minhas). O desamor corria-me nas veias. Ele era o único homem que me entendia e talvez o único que eu própria entendia. Entendia a minha solidão. E os seus livros na minha mala. Sempre. Como se houvesse sempre. Agora chego a estas palavras. Sensação boa de intimidade. Obrigada Lena. Sim, grande ideia. Assim estou eu, à procura das palavras certas para te agradecer este teu abraço. Este teu dar sem querer saber. Sente este abraço terno da Salomé

Helena said...

querida salomé *)

Anonymous said...

Os textos sobem e descem... Tens de pedir ao Pedro para vir dar aqui uma espreita e ver que tem de escrever mais, que isto ja só sobe e desce! ;)

Helena said...

este texto foi editado


e o pedro não vem à net, já disse



este lugar não é um lugar de consumo imediato mastiga e deita fora sem demora
:p

Anonymous said...

O que tu nao sabes, é que ja passei aqui muitas horas, a mastigar sem deitar fora... :)

E mais, nao sabes mas nao me ves em lugares de facil consumo!

Lyra said...

e quando não é a primeira nem a segunda namorada? namorado.. e se adormece a pensar e acorda a pensar... parece uma droga não é.. e ficamos pequeninos e tão dependentes ás vezes. Mas é de afectos. e um sorriso vale mil estrelas :)

gosto deste teu lugar que não é de consumo imediato. há coisas que levam o seu tempo ou tem que ser longamente saboreadas :)
beijinho a ti .

Ophelia Ophelia said...

eu mesmo que quisesse não gostar, não podia...o Pedro Paixão está-me entranhado na pele...na vida, desde que me passaram um livro para a mão num café há vários anos...livro que follheei com desinteresse, até não haver ninguém a quem observar e comecei por distrair-me a ler algums frases soltas! e, porque ninguém como ele descreve o meu imaginário...a minha forma secreta de ver o mundo...como diz o L. Cohen "in my secrete life...", nunca mais o deixei escapar...é como um segredo que me acompanha terapeuticamente!

e assim vivo, com esta forma de desconhecer-te tão entranhada na pele!