31.1.12

Menina do Circo

Ela estava a pintar os olhos quase colada ao espelho, como se estivesse à procura de alguma coisa dentro dos olhos, por debaixo das pálpebras, com um lápis de carvão. Primeiro um, depois o outro. Depois voltava ao primeiro.
Cada vez que abriam a porta era uma onda de ruído que entrava pelo quarto e o enchia até ao tecto.
Ele andava de um lado para o outro, como os animais presos, da janela até à parede branca e depois voltava para trás. Não valia a pena olhar lá para fora: fazia demasiado escuro. Se houvesse uma cadeira talvez se sentasse, mas não havia cadeira nenhuma e não ia ficar ali de pé, parado, num sítio qualquer. Ficaria com ar de parvo.
A meio da sala havia uma mesa redonda com coisas para comer e algumas garrafas. Ele não tinha fome nem sede.
Foi então que ela soltou dois gritos muito agudos para desprender a voz. Se calhar para afastar a ansiedade com um susto.
Também ele sentia ansiedade. Como se fosse ele que tivesse de ir cantar para uma pequena multidão impaciente, ele que não sabia cantar, nem para os amigos. "Tudo pronto. Entramos dentro de dois minutos", ouviu dizer ao guitarrista que tinha acabado de entrar. Ela pôs-se de pé. Estava vestida como uma menina do circo que anda sobre os elefantes. Isso enterneceu-o. Aproximou-se dela para a agarrar, para a beijar, mas ela estendeu os braços em frente, afastando-o. Por causa da pintura. E os beijos enfraquecem a voz. Era o que ela costumava dizer.
O guitarrista agarrou na guitarra lacada de vermelho encostada à parede do fundo e saiu.
"Até já, meu menino". E a porta fechou-se atrás dela.
Ele ia continuar o seu inútil passeio entre a janela negra e a parede branca. Contaria as músicas. Sabia que eram treze, porque era sempre assim. Até lá não havia mais nada a fazer.



Tinha a cara húmida e os olhos desbotados. O seu corpo estava quente como uma botija em lençóis frios. Deitada sobre os seus joelhos, o seu corpo enroscado cabia todo. Apesar do barulho quem prestasse atenção podia ouvir a sua respiração ofegante. Mas só um prestava atenção: o que a tinha assim ao colo como uma criança. Apeteceu-lhe ficar assim, indefinidamente ausente, mas era preciso partir. As luzes iam-se apagando aos poucos, enquanto a pequena multidão se desfazia muito lentamente sem trocar o caminho de suas casas.
Era muito tarde. Alguém disse que o carro já tinha chegado. Ele agarrou nela como num embrulho frágil e deitou-a no banco de trás. Foi também ele que fechou a porta. Alguém gritou o nome dela do escuro e o carro pôs-se em movimento.
A primeira à direita, a terceira à esquerda e depois entraram numa floresta de eucaliptos, silenciosa, durante alguns quilómetros. De vez em quando ele espreitava pelo espelho retrovisor, que tinha ajustado, para a poder ver, imóvel, estendida sobre o banco, e depois voltava a olhar para a frente descobrindo a estrada iluminada pela luz branca dos faróis. Aliás de noite nada tem cor, a não ser os sonhos dela que ele não podia ter a certeza de querer adivinhar.
A certa altura ele começou a assobiar muito baixinho. Voltou a calar-se e depois chamou pelo nome dela, mas sem que ela o ouvisse. Só para dizer o nome dela. Nisto ocorreu-lhe, por absurdo, a ideia de que alguém tinha morrido e que transportava consigo esse cadáver do qual era necessário desfazer-se urgentemente. Quase sentiu medo. Foi então, bruscamente, que uma mão lhe aflorou a nuca e ouviu uma voz que dizia: "Meu menino, meu menino".


Pedro Paixão
in A noiva judia